segunda-feira, 29 de julho de 2013

Natalícia luta para não perder a memória e cair no esquecimento (Foto: Luiza Carneiro/ G1)Natalícia luta para não perder a memória e cair no esquecimento (Foto: Luiza Carneiro)
Poucas horas antes de a boate Kiss, em Santa Maria, ser consumida pelo fogo, Natalícia Becker Moraes da Silva passou mal. Ela iria trabalhar na casa noturna como serviço gerais na noite do dia 27 de janeiro. No seu lugar, mandou a filha caçula, Janaína, de 19 anos. Já era um costume a troca entre as duas nas idas até a boate. No entanto, quando encontrou o marido, já na madrugada, o companheiro “não falava nada com nada”, como a própria Natalícia descreveu. Quando soube o motivo sentiu as pernas travarem e perdeu parte da memória.
Na semana em que o incêndio na boate Kiss completa seis meses, Rio Grande do Sul conta histórias de seis vidas transformadas pela maior tragédia do Brasil nos últimos 50 anos. De sábado (27) até quinta-feira (1), familiares, sobreviventes, amigos falarão sobre superação, dor, luta e esperança.
Antes mesmo do incêndio na casa noturna, que matou 242 pessoas, Natalícia já vivia uma batalha diária. Diagnosticada com depressão há, pelo menos, três anos, a “baixinha da Kiss”, como era chamada carinhosamente pelos colegas por conta da sua baixa estatura, lutava para se manter de pé, sustentar a casa e cuidar dos filhos.
Confusa com os sentimentos, que se misturam entre culpa, raiva e tristeza, Natalícia não se incomoda com o passar do tempo. Desde o dia da tragédia trava uma batalha contra a própria memória: não quer esquecer da filha e dos momentos felizes de sua vida.  “Eu não lembro direito das coisas. Não quero esquecer. Eu fiquei de três a quatro dias internada depois do incêndio. Acho que foi emocional”, contou.
Paciente assídua do SUS, Natalícia também foi diagnosticada com esquizofrenia. “Ela apresenta um quadro depressivo há três anos e tem crises hipertensivas”, explica Cristiane Holschuch Gonçalves, psicóloga do Acolhimento, local montado pela prefeitura da cidade para prestar assistência aos sobreviventes e familiares da Kiss. No armarinho da cozinha, a mulher guarda cerca de 10 caixas de remédio, sendo a maioria deles de tarja preta. “Tu entende agora?”, respondeu Natalícia, apontando para as pílulas.
O filho mais velho, usuário de crack, mora em Santa Catarina por um mandado judicial. “Ele não pode chegar perto de mim. Não sei onde ele está. Acho que é padeiro”, contou tentando organizar as ideias.
De acordo com o boletim médico da mulher, localizado no Acolhimento, Fábio Portela tem entre 24 e 25 anos e há anos não vê a mãe. Logo depois da tragédia ele voltou a Santa Maria em busca do dinheiro que ela recebera como auxílio. “Ele surrava muito eu e a Justiça mandou ele ir embora. Aí, ele foi pra Santa Catarina. Não falo com ele nem no telefone, se eu falo, ele me agride”, disse Natalícia, entre lágrimas.
A casa de quatro cômodos é forrada de fotos do casal de filhos, embora a única criança que viva por lá hoje seja a pequena Anali, de seis anos. Ela é fruto do primeiro relacionamento do marido de Natalícia, Alsomar Moraes da Silva, que trabalha como segurança em uma casa noturna. “Eu peguei pra mim”, falou orgulhosa sobre a criação da enteada. O pai dos seus filhos já morreu. “Fiquei 20 anos casada com ele”, lamentou sentada no sofá da sala, embaixo de um quadro com a foto da cerimônia de casamento.
Natalícia exibe a foto da filha, Janaína, que foi trabalhar em seu lugar no dia do incêndio na Kiss (Foto: Luiza Carneiro/ G1)Natalícia exibe a foto da filha, Janaína, que foi
trabalhar em seu lugar no dia do incêndio na Kiss
(Foto: Luiza Carneiro)
Funcionária da boate Kiss desde 2010, a mulher gostava da atividade e, apesar de tudo, diz sentir saudades. “Eu gostava de lá. É uma pena acontecer isso. Os chefes eram muito bons”, relembra.
Durante as festas, ela era responsável por juntar os copos, as garrafas e lavar a louça. Após a tragédia, não conseguiu um novo emprego. Ainda não teve forças para tentar. “Noturno eu não quero mais. Minha carteira está trancada, né. Alguém tem que dar baixa. Nem perguntaram nada, ninguém me ligou”, reclamou.
Pela manhã, quando acorda às 8h, a pequena mulher inquieta gosta de limpar a casa. Atividade que Janaína também adorava fazer. “Sinto muita saudade da minha filha. Ela limpava a casa , gostava de limpar, lavar a roupa”, disse emocionada. Em um álbum prata guarda as fotos da jovem que não voltará nunca mais. Nas imagens, a família está feliz, comemorando a formatura do colégio e o início de uma nova fase. “Ela nunca me incomodou, era boazinha. Vinha do colégio pra casa e estudava os animais”.
Na parede da casa, uma foto do filho Fabio e da filha Janaína (Foto: Luiza Carneiro/ G1)Na parede da casa, uma foto do filho Fabio e da filha
Janaína (Foto: Luiza Carneiro/ G1)
Há um ano Janaína estudava para prestar vestibular para medicina veterinária, ali mesmo na Universidade Federal do município. Amante dos bichos, Natalícia hoje convive com três cachorros. “A Jana os pegou da rua.”.
Alguns amigos costumam lhe visitar a tarde e, às vezes, ela conversa com os proprietários do açougue em frente a sua casa, uma pequena sala que aluga para manter as contas dias. “Recebo dinheiro da saúde, mas não dá pra nada. É menos que um salário, acho”, reclama. Em uma situação que Natalícia mesmo classifica como “péssima”, a mulher luta diariamente para não ser traída pela memória e, enfim, cair no esquecimento.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, resultou em 242 mortes. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco.
O inquérito policial indiciou 16 pessoas criminalmente e responsabilizou outras 12. Já o MP denunciou oito pessoas, sendo quatro por homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho. A Justiça aceitou a denúncia. Com isso, os envolvidos no caso viram réus e serão julgados. Dois proprietários da casa noturna e dois integrantes da banda foram presos nos dias seguintes à tragédia, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em 29 de maio.
Veja as conclusões da investigação
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso no palco
- As faíscas atingiram a espuma do teto e deram início ao fogo
- O extintor de incêndio do lado do palco não funcionou
- A Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás
- Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas
- A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular
- As grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas
- A casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída
- Não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência
- As portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário
- Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas

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